quarta-feira, 1 de dezembro de 2021


quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Mini reflexão sobre os “problemas” dos atuais candidatos e das nossas “elites” - Paulo Roberto de Almeida

Começo sendo um pouquinho desrespeitoso, como convém a um contrarianista e adepto do ceticismo sadio (como se aprende lendo Balzac):

O problema do Lula é ser corrupto e mentiroso. 

O do Bolsonaro é ser psicopata perverso e totalmente incompetente. 

O do Moro é de ser ligeiramente esquecido sobre as traquinagens que fez enquanto juiz e de ter (ingenuamente ou forma oportunista) confiado no psicopata para levá-lo ao STF. 

O do Ciro é o de pretender ser um sabe-tudo, e de insistir nisso.

Tem mais, para os demais candidatos também, pois nunca fui de poupar qualquer candidato, exigente como sou, na minha condição de eleitor alerta e consciente e de ser um cidadão instruído e participante na busca de soluções aos problemas do Brasil (eles são muitos, infinitos).

 

Mas vamos a uma pequena exposição sociológica e histórica sobre os nossos grandes problemas.

Todos os candidatos merecem ser reduzidos em suas respectivas faltas de humildade, ao pretenderem ser o próximo salvador da pátria. Não são! Pelo menos não sozinhos, nunca serão.

O Brasil não será salvo por um paladino solitário, que pretende encarnar todas as virtudes de um presidencialismo imperial, o pior sistema de governo que pode existir (fora da autocracia, claro). E já confesso aqui que sou parlamentarista, mas sem qualquer ilusão: sei que o regime parlamentar, num país como o Brasil, vai redundar (pelo menos numa primeira fase, 10 a 15 anos) na exacerbação das PIORES práticas do nosso estamento político altamente corrupto: patrimonialismo, nepotismo, fisiologismo, prebendalismo, aparelhamento, “emendalismo” doentio, enfim, tudo aquilo que detestamos, mas que continua a persistir no Brasil dada a baixíssima educação política do eleitor brasileiro (para não dizer falta de educação tout court). 

Talvez, quem sabe, mesmo remotamente, o parlamentarismo poderá ajudar a corrigir lentamente todos os problemas brasileiros, que são muitos, mas que resumo em três principais tragédias: a não educação, a corrupção política e a insegurança judicial (que também é reflexo dos privilégios exorbitantes e das ambições individuais da alta magistratura, nossa Nomenklatura, os novos aristocratas do Ancien Régime, que aliás vivem com mais conforto e luxo do que a antiga noblesse de robe, bem mais do que a noblesse d’epée, nossos milicos, que também gastam consigo, e com seus familiares, muito mais do que deveriam).

 

Mas, retomo o PROBLEMA da “salvação” do Brasil, se é que ela ainda existe, isto é, se o Brasil já não foi lançado de uma espiral sem fim para o fundo do poço, um grande torvelinho apontando para um processo de declínio contínuo, uma espécie de “race to the bottom”, no qual parecem querer jogá-lo todos esses representantes das elites dominantes e dirigentes que mandam no país e seus habitantes. 

ELITES: pronto, cheguei na palavra chave que define o estado presente (o passado também) e o futuro do país. Sem pretender aderir a qualquer teoria das elites — à la Gaetano e Mosca, objetos de minhas leituras juvenis como sociólogo aprendiz —,  não há como recusar o fato elementar de que, à exceção dessas hordas de bárbaros lançados desenfreadamente à conquista de territórios vizinhos, toda nação, qualquer país normalmente constituído, qualquer Estado funcional, é sempre dominado e dirigido por uma elite, mesmo quando a elite é múltipla, dispersa, não coordenada entre si, contraditória em seus desejos setoriais, eventualmente brigona e conducente a rupturas políticas frequentes (como acontecia na Itália das lutas entre guelfos e gibelinos, como bem sabiam Guiccardini e Maquiavel das Istorie Fiorentine). 

Certos países, como vocês sabem, são lançados em uma inevitável decadência— aqui mesmo, ao lado, e na longínqua Ásia, em outros tempos — por falhas conjunturais de seus sistemas políticos e por falhas estruturais de seus sistemas econômicos, e SEMPRE por falta de suas elites dirigentes e dominantes, que são as que mandam, mesmo desordenadamente, no país em questão, o que ocorre muito frequentemente, mesmo em países supostamente avançados (e os EUA de Trump, com seus caipiras amestrados e dois partidos atualmente disfuncionais, não me deixam mentir).

Não sei se o Brasil já chegou a esse ponto de um declínio estrutural e longevo, inevitável ainda que imperceptível, ou se ele está apenas resvalando na beira do precipício, mas me parece evidente que suas estruturas econômicas e suas instituições politicas — nos três poderes — já se tornaram disfuncionais e autofágicas. Tudo isso por culpa da tremenda MEDIOCRIDADE de suas elites, tão evidente (quando se ouve qualquer um de seus pretensos representantes, com raras exceções) que dispenso até de oferecer exemplos. 

OK, elas já eram medíocres, cegas e ignorantes, ao preservar o tráfico, a escravidão, um regime voltado unicamente aos interesses dos grandes proprietários e dos mandarins do Estado, desde a Independência, como já alertavam antes, e continuaram alertando depois, mentes preclaras, como foram Cairu, Hipólito e Bonifácio (sem conseguir se fazer ouvir pelo que comandavam aos destinos da nova nação que surgia).

Depois elas melhoraram um pouco, ao ter mais filhos educados em boas universidades estrangeiras — não tinhamos, nunca tivemos as nossas, até meados do século XX — e abertos às leituras dos melhores livros. O fato de termos acolhido refugiados, exilados e emigrantes de boa formação também ajudou: depois, os milicos e nacionalistas rastaqueras cortaram a porta de entrada desses imigrantes de qualquer tipo, ricos e pobres, a pretexto de “preservar empregos aos nacionais” e de “salvaguardar a segurança nacional”: IDIOTAS!

Seja como for, certas elites no meio do caminho melhoraram um pouco a administração do país ao se ajustarem ao que Gilberto Amado falava da República Velha: “as eleições eram falsas, mas a representação era verdadeira”, no sentido em que os “eleitos” eram membros de uma elite educada, falando direito, conhecendo as leis e dotadas de um visão cosmopolita (pois eram os únicos que viajavam, falavam Francês, ainda que fosse mais para falar com as meninas do Moulin Rouge do que para se entreter com estadistas da Europa). Depois veio a época da americanização do Brasil, com aquele jeito grosseiro do Tio Sam, mas com muitomais dinheiro do que os antigos banqueiro da City londrina. Era isso a nossa antiga elite imperial e da Velha República; tinha manias francesas, mas o dinheiro era inglês, como ainda registrava Monteiro Lobato em seu Mister Slang e o Brasil, um perfeito retrato do Brasil atrasado e corrupto da Velha República.

O próprio Lobato foi para a América e voltou americanizado, querendo dar aço e petróleo ao Brasil: não conseguiu, mas abriu os caminhos da modernização industrial com que sonhava Mauá e que seria feita pelos milicos nacionalistas e pelos parvenus da indústria, imigrantes ou os velhos barões do café reciclados nas engrenagens do novo modo de produção.

Até que fizemos bem, e o Brasil da periferia se tornou uma grande nação industrial — com as distorções do protecionismo renitente e do mercantilismo ideologico — mais até do que certos países da Europa meridional.

Tudo parecia sorrir para aquele otimismo dos “cinquenta anos em cinco” quando as ambições desmedidas de alguns governadores e a paranoia anticomunista dos milicos nos levaram a um novo golpe militar, um dos muitos que se sucediam desde a derrocada da monarquia e o advento da república, justamente por meio de um reles golpe militar. O florianismo — essa coisa do “faremos à bala” — parece que ficou incutido em muitos militares e em vários civis.

O fato é que os milicos donos do poder até que não fizeram mal no plano estritamente material e infraestrutural, mas erraram tremendamente no plano educacional, não por culpa deles inteiramente: eles vinham das boas escolas militares ou da primeira fase das “escolas republicanas”, que era de boa qualidade, mas que só alcançavam as classes médias e as camadas pobres urbanas, excluindo totalmente os desclassificados das favelas, dos subúrbios e os muitos rurícolas (ainda praticamente 50% da população).

Os militares negligenciaram a educação de massa de boa qualidade (como fizeram, por exemplo, as elites coreanas, inclusive a ditadura militar) e investiram pesadamente na superestrutura, a graduação, a pós e a P&D, o que não estava errado, mas era insuficiente e discriminatório, num país que se urbanizava, se industrializava e se democratizava socialmente (sim, a despeito da ditadura, o processo de ascensão social se ampliou e se diversificou durante o regime militar, e mesmo a cultura se ampliou e foi extremamente vibrante durante e apesar da ditadura retrógrada e censória).

 

Volto ao PROBLEMA das elites, pois o nó dos problemas Brasil está, continua sendo, sempre foi, a mediocridade das nossas elites, as oligárquicas, as industriais, as do mais recente agronegócio frondoso, as velhas do establishment militar, os mandarins do Estado, com destaque para a magistratura prebendalista, e até algumas elites acadêmicas, sonhadoras e distantes do povo, como costumam ser, e inclusive algumas novas elites vindas do chamado “sindicalismo alternativo”, que se adaptou rapidamente ao ambiente corrupto criado pelos vínculos estatais (e até derivaram para o sindicalismo mafioso). 

Já nem preciso atacar as elites políticas, pois que, depois dos grandes tribunos da República de 1946 (alguns sobreviveram ao regime militar), o terreno foi invadido pelos representantes do corporativismo persistente, pelos oportunistas do baixo clero, pelos demagogos ignorantes e por toda uma fauna variada que se acomodou nos privilégios e mordomias criadas pelos militares (para domesticar esses “representantes do povo”) e que acabou criando esse estamento político impérvio às necessidades da nação, só interessados em seus ganhos privados a partir da “socialização dos prejuízos”, o que sempre fizeram todas as oligarquias.

O Brasil virou uma plutocracia, mas não de antigas classes privilegiadas, e sim de parvenus continuamente incorporados aos circulos dominantes e dirigentes, como os novos milionários: o “rei do cimento”, o “rei do gado”, o “rei da soja”, os “reis” de qualquer coisa, mas sempre grudados num alvará régio, numa concessão estatal, numa prebenda qualquer do poder público.

 

Mas, qual é o problema principal de nossas elites (e aqui retomo uma ideia do Bolívar Lamounier, que pretendia fazer dela um projeto de pesquisa )? O problema é que que essas elites NÃO FALAM ENTRE SI, além e acima de seus interesses particularistas, e da coordenação de seus interesses setoriais das associações respectivas e das confederações nacionais dos grandes ramos da economia.

Os grandes barões (vários ladrões) dessas entidades não conversam quase nada entre si, sobretudo quando se trata de “comprar” (esse é o termo) o seu senador, o seu deputado, ou quando muito para virem a Brasília reclamar (ou exigir, sob ameaça de desemprego) favores setoriais, que são concedidos isoladamente para aquele setor, mas que depois recaem sobre toda a sociedade (sob a forma de tarifas protetoras, subsídios fiscais, empréstimos e financiamentos dos bancos estatais a juros camaradas).

 

Esse é o PACTO PERVERSO que coibe, dificulta, obsta ao desenvolvimento social do país, mas que privilegia, protege e promove os interesse e os ganhos da parte alta da “Belíndia” (apud Edmar Lisboa Bacha). Um pacto perverso que junta os donos do capital, os donos do dinheiro, a seus representantes políticos, alguns até representantes da “classe operária”, mas que se acomodaram no compadrio geral do dinheiro fácil.

Pode ser que a exacerbação da extração politica do estamento congressual, simbolizado por todas essas emendas abusadas — que nada mais são do que um verdadeiro estupro orçamentário —, convença agora as elites dominantes a rever a sua relação com o estamento político nacional, que se transformou numa “classe em si”, no sentido marxista da palavra, além de tudo, uma classe egoista, com representantes autistas e depravados.

 

Eu teria muito mais a dizer sobre os PROBLEMAS do Brasil, mas creio que estas considerações são suficientes para dar início a uma segunda série de proposições a respeito de possíveis soluções a nossos problemas mais prementes. Vale pela atenção…

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 1/12/2021

Paulo Roberto de Almeida at 12:12

domingo, 12 de abril de 2020

A Teoria do Óbvio


Em tempos de politização de tudo, alguns cuidados básicos acabam sendo necessários ao postar dados ou opiniões nas redes sociais, especialmente quando essas informações tiverem o potencial de contrariar crenças necessárias à manutenção das teogonias que se contrapõem na internet. Lembre-se de que qualquer fato contradiz alguma crença, inclusive esta.

Assim, além de explicitar com todas as letras o que você deseja enfatizar com as informações que apresenta, é necessário abrir a postagem com o óbvio do óbvio do óbvio. Isso porque, a partir da sua informação, muitas pessoas farão as contas óbvias e terão os insights óbvios, e poderão acusar sua postagem de omitir o óbvio. Então, por mais que você queira ir diretamente ao ponto, não queime etapas: explique os primórdios do raciocínio, ainda que estes lhe pareçam evidentes. Isso minimizará o "fogo amigo" e reduzirá o trabalho de ter que explicar a muitas pessoas que, para poderem contestar ou contribuir com o raciocínio explicitado, primeiro elas deveriam ler o post.

Portanto, a abertura do seu post deverá conter algo como: 
“AVISO: não defendo o Lula, não defendo o Bolsonaro, não sou comunista, não sou plutocrata, sou republicano e democrata e não faço apologia a ditaduras, sejam de "esquerda" ou de "direita"; sou antipopulista; não referendo HCQ, mas acho que as pessoas podem se agarrar a qualquer esperança que não as mate; sei do problema de quem não está trabalhando, porque meus clientes, meu patrão e eu também não estamos; não torço contra o Brasil; quero que todos sobrevivamos à pandemia; não sou médico nem cientista, mas sei ler um gráfico; o que estou apresentando são fatos, os dados são os oficiais, e a análise que faço dos fatos visa evidenciar o elemento x, com o objetivo de abrir um debate científico dentro de parâmetros de civilidade, que a corrobore ou que a corrija; o raciocínio contido nesta postagem partiu do elemento n, confrontado com o problema z, levando à conclusão y, que é referendada pelos elementos j, k e g, conforme atesta a literatura h, disponível na obra m, do autor f, que tem a formação t e é especialista no assunto w”. 

Ademais, há conceitos que muitas pessoas não conseguem alcançar, mas que usam sem cerimônia, como "comunismo”, "direita", "esquerda", "hipocrisia", "democracia" ou "reacionário"; e outros que passam despercebidos, como "populismo", "República", "método científico", "extremismo", "despreparo", "freios e contrapesos", "integridade", "honestidade" etc., que, por mais óbvios que lhe possam parecer, será necessário explicar a priori.

Por outro lado, se você fizer um disclaimer desses todas as vezes em que publicar alguma coisa na rede, as suas postagens se transformarão num campo de batalha, uma vez que você terá agredido simultaneamente a todas as crenças das quais muitas pessoas, encampadas nisso ou naquilo, dependem para por um mínimo de ordem na sua cosmogonia particular.

A conclusão a que se chega é a de que, por mais clara que sua publicação possa lhe parecer, será impossível evitar que torcedores disso ou daquilo entrem no seu post bradando palavras de ordem (atualmente chamadas de “hashtags”), na esperança de que seus gritos modifiquem os fatos. Assim, se você tem informações produzidas a partir da análise responsável de dados rastreáveis, publique-as de peito aberto e prepare-se para o óbvio: num país onde os livros são considerados um amontoado de muita coisa escrita, sempre aparecerá no seu post alguém disposto a incendiá-los.


quinta-feira, 28 de junho de 2018

Coalizão contra Lava Jato aproveita Copa para matar a operação

Esperteza do grupo não se limita ao timing da iniciativa, mas também a sua abrangência


Aproveitando a distração popular com a Copa do Mundo na Rússia, a coalização empenhada em matar a Operação Lava Jato avança.
A esperteza desse grupo de políticos, empresários e ministros de tribunais superiores que comanda o atual regime e corre algum risco diante das investigações não se limita ao timing da iniciativa, mas também à sua abrangência.
Na jogada brilhante dos últimos dias, os representantes do pacto no STF soltaram presos, suspenderam processos e beneficiaram gente graúda em todo o espectro ideológico.
A ofensiva do STF não podia ser mais conveniente para os partidos políticos. Como estamos à beira de uma eleição gigantesca para renovar o Executivo e o Legislativo, quem tem cargo eletivo prefere não agir em público contra juízes e promotores que ainda gozam de apoio popular. De olho no eleitor, a CPI da Lava Jato foi retirada de cena com a mesma teatralidade em que lá foi posta.
Graças ao trabalho da corte suprema, os partidos foram à forra. O PT conseguiu tirar da cadeia um ministro chefe da Casa Civil, inocentar uma senadora da República, anular uma busca e apreensão em seu apartamento e, de quebra, invalidar as provas que tinham por alvo seu marido, ex-ministro poderoso da sigla.
Com a ajuda do Supremo, o PSDB livrou o deputado estadual da suposta máfia da merenda escolar da denúncia que o pressionava.
O MDB tirou da prisão o operador acusado de esquema de fraudes em fundos de pensão como Postalis e Serpros.
O PP conseguiu soltar um tesoureiro, rejeitar ação penal sobre intermediação de propina e adiar o julgamento de um senador.
O PSD conseguiu livrar um deputado de denúncia de falsificação de documentos, e o PC do B aproveitou o embalo para recorrer contra a prisão em segunda instância.
Passada a eleição, o pacto oligárquico redobrará sua aposta, aproveitando a baixa taxa de renovação politica. Qualquer substituição da velha política por um sistema um pouco mais limpo e decente demandaria mudanças profundas nas regras do jogo, mas nada indica que isso vá ocorrer.
Depois de outubro, o pacto também contará com um presidente mais forte do que o atual. Aí poderá introduzir novas regras para reduzir o poder do Ministério Público, aumentar a capacidade das cortes superiores de descartar evidências coletadas em delações premiadas e restaurar a prática de postergar condenações para quem tem condições de arcar com as custas de advogados de elite.
A seleção brasileira encerrou a semana na Rússia chegando à liderança de seu grupo. Mas a grande vitória de 2018 será a do atraso.
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Matias Spektor
Ensina relações internacionais na FGV. Trabalhou para a ONU antes de completar o doutorado em Oxford.

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/matiasspektor/2018/06/coalizao-contra-lava-jato-aproveita-copa-para-matar-a-operacao.shtml 

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Ir

Resultado de imagem para flowerA solidão começa cedo. Deixamos solidão na casa dos pais. Amigos do peito e grandes amores se vão. Os filhos se vão e, de repente, é a nossa vez de sentir que a casa ficou grande demais. Vamo-nos, e deixamos a solidão de herança para mais alguém.

Passamos a vida inteira expandindo nossos espaços para minimizar as nossas muitas solidões. Iluminamos, limpamos, pintamos, colorimos, agregamos, descobrimos, inventamos, repomos com qualidade; mas, uma vez concretizada pela partida, cada solidão é impreenchível. É um ente remoto, guardado em um local feliz e dolorido, e que nunca morre.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Diretas Já

Quando cheguei a Brasília, em 1997, impressionou-me a facilidade com que o idioma local, emprestado em boa parte do linguajar do interior de Goiás, renomeava praticamente toda a culinária nacional, acidentes geográficos, interjeições e a gramática. Eu temia, por exemplo, pedir uma cerveja e receber, sei lá, um carrinho de mão.
Vinte anos depois, a política nacional não apenas absorveria essa liberdade metamórfica do cerrado como a potencializaria, produzindo uma espécie de obsessão pelo eufemismo e pelo que Welles chamou de "duplipensar".
O exemplo mais atual desse fenômeno é a campanha por eleições diretas para presidente da República em 2017. Buscando capitalizar a grife que nomeou o movimento aglutinador da sociedade brasileira em 1984 (aliás, por Tupã!, parece que não há como negar a presença de Orson Welles em nossos kafkianos esforços por democracia), os partidos políticos de esquerda gritam "diretas já" em showmícios que estariam superlotados não fosse a onipresença das bandeiras da CUT, do MST, do MTST, do PT e das camisetas do Che.
“Diretas já” não é algo possível, devido ao impedimento constitucional. Assim, busca-se mudar nossa tão jovem e já tão esparadrapada Constituição Cidadã, para que permita "votação popular caso os cargos de presidente e vice-presidente fiquem vagos nos três primeiros anos de mandato". É muito provável que essa PEC tivesse outra redação se a crise atual ocorresse no primeiro ano do mandato, ou no segundo. Embora seja consenso universal que, seja quem for o presidente "indireto" a ser escolhido pela Câmara, será o pior possível, o casuísmo da "PEC das Diretas" é evidente. Para complicar, caso o mandato do atual presidente venha a ser cassado, a aprovação dessa PEC exigirá uma outra PEC -- ou um exercício de hermenêutica do STF -- que altere o Artigo 16 da Carta Magna e confira à primeira PEC aplicabilidade imediata.
Todo esse esforço deságua no seguinte: neste momento, ninguém fez campanha e o único possível candidato a presidente da República que -- menos por seus méritos que por outras razões -- tem sua marca exposta diariamente na televisão e nos jornais é Lula. Diferentemente dos outros possíveis candidatos, Lula tem uma base fiel, imune ao noticiário. Seria uma eleição praticamente sem concorrência, até porque o ex-presidente precisa desesperadamente de imunidade contra as primeiras instâncias da Justiça, e por ela é capaz de mover toda a montanha de recursos da Odebrecht, perdão, do Erário, digo, do partido, ora espalhados pela Suíça, Cayman, Panamá, Cuba, Angola, Atibaia e outros lugares improváveis, tornando imbatível em múltiplas instâncias a sua já forte candidatura.
“Diretas Já”, hoje, é apenas um eufemismo, um candanguês, um duplipensar, para “Volta, Lula”. O fato de o “movimento” disfarçar-se com o nome da grife de aglutinação nacional contra o regime militar já constitui motivo para alguma desconfiança; mas o disfarce tem sido a regra no discurso das esquerdas desde muito antes que as brechas não sanadas nos caóticos discursos de Dilma Rousseff começassem a ser vistas em ferrenho combate aos fatos. O “diretas já” de 2017 não passa de mais uma tentativa de recriar a realidade, pondo em prática o princípio de que o critério de certo ou errado, na política, é o êxito -- no caso em tela, um êxito pessoal, sindical, partidário.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

O Golpe

Impossibilitada de ressuscitar a CPMF, a Presidente da República utiliza-se de expedientes mais sorrateiros para financiar sua campanha em curso junto ao Baixo Clero da Câmara dos Deputados: por exemplo, o Banco Central acaba de criar nova tarifa, no valor de R$ 80, sobre cada operação de câmbio resultante de ordens de pagamento recebidas do exterior por pessoas físicas -- como se não bastasse o IOF e o spread monstruoso de que o governo já se apropriava até o mês passado.

Juro que não me importaria de pagar 80, 100, 200, se soubesse que o dinheiro iria ser usado para salvar a vida de quem está nos corredores dos hospitais públicos ou para o atendimento das inúmeras carências às quais os brasileiros já nos acostumamos e às novas que começamos a enfrentar desde os anos mais recentes. Mas é fácil calcular que esse dinheiro irá suprir o desfalque representado por alguma emenda parlamentar obscura, cuja finalidade é a de dar à Presidente mais tempo para continuar não fazendo nada em proveito do país.

E ainda se atreve a chamar de golpe o processo republicano iniciado no Tribunal de Contas da União, regulamentado pelo Supremo Tribunal Federal e conduzido pelo Congresso Nacional na forma definida pela Constituição Federal.

Por mais fisiológicas e desacreditadas que tenham-se tornado as instituições da República, o processo de impedimento não deveria surpreender a uma chefe de Estado que claramente considera que os fins, sejam esses quais forem, justificam os meios.

terça-feira, 5 de abril de 2016

Reflexões políticas sobre uma máquina de lavar



Quando comprei minha primeira máquina de lavar louça, ela era toda branquinha, branquinha. Após anos de uso intensivo, foi preciso deixá-la na assistência técnica para substituição de uma válvula e, dias depois, quando a fui buscar, fiquei surpreso ao notar que queriam devolver-me uma máquina de lavar com a porta amarela. "Não é essa a minha máquina!", objetei. "Minha máquina é toda branca, não tem essa tampa amarela".
Pacientemente, o técnico explicou-me que aquela era, sim, a minha máquina: o tempo e a água quente haviam-se encarregado de mudar a cor do polímero de que é fabricada a porta.
Hoje percebi que a porta da minha segunda máquina de lavar também mudou de cor. O tempo e as provações mudam qualquer coisa, incluindo-se aí as máquinas e as pessoas. Pais, esposos, quem se afeiçoa e convive não percebe as mudanças lentas, diárias, sutis e implacáveis -- e o objeto que vemos diariamente e a cuja imagem ideal nos afeiçoamos permanece para sempre igual na nossa mente, por mais que os olhos insistam em mostrar coisa diversa. Nosso ideal permanece imutável e não há realidade que o subverta. E isso nos faz felizes para sempre. (Claro que também existe aquilo ou aqueles que mudam para melhor.)
Mas as máquinas de lavar louça também explicam o motivo pelo qual é possível amar um ditador ou um político desonesto: quem o ama comprou sua aparência inicial e não o viu mudar; e o enxerga imaculado. Somente o distanciamento, ou o desamor, pode mostrar as marcas das horas e as cicatrizes dos eventos.
É por isso que, em política, amar é pernicioso.


quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Reacionário



A moda é chamar de "reaça" tudo o que não atenda à exigência de pensamento único. Sobretudo na falta de encontrar um “ismo” pra chamar de seu, as pessoas que têm o termo na ponta da língua simplesmente se consideram “progressistas”, já que o Grande Ismo, a ideologia do comunismo – que chamava, justamente, de “ideologia” tudo o que não fosse comunista – saiu de moda. É suficiente, agora, ser “de esquerda”.
A tática é simples: na falta de argumento sustentável basta chamar de "reaça" aquilo que não for “progressista” e aderente ao pensamento único do Partido no poder; e, com toda a sorte de contradições, associar ao "reacionário" tudo aquilo que for ruim: fascismo, racismo, ditadura, homofobia.
Reacionários, entretanto, são o exato oposto de tudo isso. Os reacionários são aqueles que, ao ver um problema social, desconfiam da solução “revolucionária” de praxe (aumentar o poder do Estado para que ele corrija / proíba / financie) e, imaginando como as coisas reagem, se posicionam contra a concentração de poder nas mãos de uns poucos bem-iluminados que, supostamente, podem “corrigir” o problema. Reacionários são os caras que desconfiam de políticos.
Por isso, os reacionários eram considerados os inimigos das “revoluções” – esta palavra que soa tão agradável a ouvidos desacostumados com a História, que não percebem que toda “Revolução” contra tudo o que está aí resultou no poder absoluto nas mãos de um tirano que simbolizava o pensamento único: a Revolução Francesa decai em Napoleão Bonaparte depois do Terror, a Revolução Russa faz o poder do tsar parecer minúsculo perto de Lenin, Stalin, Kruschev, Andropov e afins, a Revolução Chinesa põe no poder Mao Tsé-tung, que mata sozinho, por métodos que vão do fuzilamento à fome, mais de 70 milhões de pessoas; a Revolução Iraniana, idolatrada por Michel Foucault (que era gay), transforma o ocidentalizado Irã no totalitarismo fechadíssimo de Rūḥollāh Khomeini que enforca gays em praça pública. Todos estes tiranos odiavam os “reacionários” que avisaram: “não faça revolução, vai dar m…”
Não por outra razão, os “reacionários” eram cantados como alvo de ódio pelos hinos dos dois maiores totalitarismos da história mundial, a Internacional Socialista e o hino nazista, a Canção de Horst-Wessel (“Kameraden, die Rotfront und Reaktion erschossen”). “Reacionário” era o epíteto dado aos inimigos dos revolucionários, que queriam o poder total (a marca da era moderna) para “corrigir” a sociedade. Reacionário foi quem se opôs a Lenin, a Mao, a Hitler, a Mussolini, a Khomeini, a Fidel, a Milošević, a Saddam, a Kadafi, a Mugabe, a Kim Il-sung – foram os refratários ao reformismo social pela tirania estatal.
Tem como se ofender com alguém nos chamando de “reacionários” por isso? Tem como não notar a contradição brutal em chamar alguém de reacionário e fascista ao mesmo tempo, quando um era inimigo mortal do outro a ponto de ser cantado como alvo de ódio até no hino nacional e internacional?
Reacionários são os caras que desconfiam dos corações bem intencionados, das cabeças com pouca leitura e dos ânimos exaltadíssimos dos revolucionários por saberem que essas coisas não têm bom resultado. São os chatos que dizem que “protesto” sem foco termina invariavelmente em black bloc matando inocente na rua.
Já o revolucionário acha que os expurgos stalinistas e as mortes de fome em fazendas coletivizadas foram apenas uma festinha que fugiu do controle – ou, caso seja na coletivização de fazendas do Zimbábue pelo socialista Robert Mugabe, ainda posta foto de africanos morrendo de fome dizendo que é isso que o capitalismo, o livre mercado e a propriedade privada fazem.
O reacionário descobre como as coisas reagem porque pensa como um dos homens mais inteligentes da humanidade, G. K. Chesterton: em seu ensaio The Superstition of School, Chesterton explica que não é esperado que os homens “velhos” sejam reacionários, mas que, com a experiência, saibam que as coisas reagem e como reagem – ao contrário do furor revolucionário, que crê religiosamente que o mundo será moldado passivamente com as suas boas intenções. Se um homem atira num coelho, num velho ou num rei, deve esperar reações dessa ação.
É por isso que David Hume, o cético que é maior expoente do empirismo, lembra que as doutrinas e tradições são conhecimento, e não precisamos atirar nós mesmos em um coelho, um velho ou um rei para descobrir as conseqüências. É por isso que conservadores olham para o passado: para não precisar seguir caminhos que os antigos já sabiam que dariam errado no futuro. É por isso que os conservadores conservam tradições e lêem livros antigos, de Platão a Montaigne, de Shakespeare a Solzhenitsyn – o revolucionário, por outro lado, acredita que suas boas intenções bastam para “consertar” o mundo, sem esperar nenhuma reação da dura realidade.
G. K. Chesterton nos ensina que o homem que acumula a sabedoria das reações não perde ideais, como os jovens costumam crer que os velhos perderam seus sonhos. Pelo contrário: o socialismo ideal, o capitalismo ideal ou qualquer Utopia, mantida pura no mundo das idéias, hagiograficamente virginal ao contato com a realidade, continua sendo sempre ideal. O problema é o real: como é um regime de “reforma agrária” com fazendas e fábricas coletivas na realidade, como é a vida livre da “burguesia” em um mundo real em que cada “burguês” desaparecido é mais um cadáver em uma pilha monstruosa.
Ser reacionário é saber como as coisas reagem. É ter um saber que prevê reações antes mesmo de elas ocorrerem. É o homem que vê conseqüências imprevistas onde o afobado vê motivo para exaltação e ânimo em marcha acelerada. É o homem que, como Prometeu no mito, o primeiro reacionário, vê o mal antes mesmo de ele ocorrer. É, enfim, o homem que não nasceu ontem, que não é seduzido por discursos maviosos de quem quer melhorar o mundo sob mandos da concentração de poder e da proibição do que não gostam e do subsídio ao que gostam. Como se ofender em ser reacionário?
Vários dos grandes reacionários brasileiros, como o filósofo Mário Ferreira dos Santos ou o crítico literário Otto Maria Carpeaux, autor da maior História da Literatura do mundo, morreram vociferando contra o golpe de 64 e seu obscurantismo.
Vejamos uma frase famosa de Che Guevara, ícone estampado nas camisetas de marmanjos que se sentem “de esquerda” com síndrome de Peter Pan do DCE:
“Não posso ser amigo de quem não compartilha das mesmas ideias que eu”.
Agora as palavras de um reacionário, o nobre Erik von Kuehnelt-Leddihn, homem de conhecimento enciclopédico capaz de ler em mais de 20 línguas e, como bom reacionário austríaco, um fugitivo do nazismo, em seu O Credo do Reacionário:
"Como um reacionário honesto, eu naturalmente rejeito o Nazismo, Comunismo, Fascismo e todas as ideologias relacionadas que são, de fato, um reductio ad absurdum da chamada democracia e do “povo no poder”. Eu rejeito os pressupostos absurdos do governo da maioria, do parlamento hocus-pocus, o falso liberalismo materialista da Escola de Manchester e o falso conservadorismo dos grandes banqueiros e industrialistas. Eu abomino o centralismo e a uniformidade da vida em rebanho, o espírito estúpido racista, o capitalismo privado, bem como o capitalismo de estado (socialismo) que contribuíram para a ruína gradual da nossa civilização nos últimos dois séculos".
O verdadeiro reacionário desses dias é um rebelde contra os pressupostos prevalecentes e um “radical” que vai até as raízes.
Tem como se ofender em ser chamado de “reacionário”? Perceber essa platificação de pensamento é ser um “reaça”, já que a ditadura de pensamento único não permite, por definição, pensamentos discordantes. Trata-se de uma estratégia para definir limites do que é permitido pensar.
É a uniformidade da vida em rebanho, o coletivismo bovinóide, o cult of the sameness tão combatido pelo reacionário Kuehnelt-Leddihn.
Assim como apóiam ditaduras militares e acusam os reacionários de serem saudosistas da ditadura; serem modistas e afirmarem que estão denunciando uma moda; serem sedizentes “críticos” e abraçarem irrefletidamente qualquer -ismo do momento; imputarem pensamentos nojentos a seus adversários e admirarem quem os leva a cabo, o anti-reaça da última moda também adora defender a “diversidade”, ao mesmo tempo em que odeia toda forma de “desigualdade”, nunca percebendo a contradição brutal no núcleo de sua crença fanática.
Os reacionários não seguem um bloco de pensamento fechado, como crêem e evangelizadoramente querem fazer crer os seguidores do pensamento único hegemônico. Kuehnelt-Leddihn, Chesterton, Xavier Zubiri, Miriam Joseph, Mário Ferreira dos Santos, Olavo de Carvalho são pensadores católicos. O grosso dos “reaças” americanos, por óbvio, são protestantes. Alguns, judeus (essa turma que foi vítima do nazismo e que a esquerda odeia pelo mesmo motivo, mas jura que o nacional-socialismo nada tem a ver com socialismo): Dennis Prager, Ben Shapiro, Mark Levin, Michael Medved. Outros são muçulmanos, como René Guénon, Frithjof Schuon ou Hossein Nasr. Alguns são ateus, como S. E. Cupp, P. J. O’Rourke, H. L. Mencken, Jillian Becker.
Ser “reaça” é defender o individualismo e a responsabilidade individual perante o coletivo – por óbvio, portanto, que eles discordem bastante entre si. Ronald Reagan era a favor de anistia para imigrantes ilegais. William F. Buclkey Jr. era a favor da legalização das drogas (como o são todos os “libertários”). Barry Goldwater era a favor da descriminalização do aborto. Ser “reaça” é defender a liberdade de pensamento individual – por exemplo, alguém não defender o casamento gay porque acredita que o casamento é instituição de formação da sociedade, e acredita que não se deve tratar como “casamento” uma união que não é formação de família.
Já ser de esquerda, sim, é pensar em bloco: se você é de esquerda, obrigatoriamente tem de ter as mesmas opiniões do coletivo sobre aborto, casamento gay, drogas etc do grupo. Discordar em um ponto é “preconceito obscurantista”. Sempre que alguém apresenta argumentos contra o pensamento único dos “anti-reaças”, os rebanhistas imediatamente os tacham de pessoas poderosas e malévolas querendo defender os seus “privilégios.
É o moralismo capenga do progressismo: define-se limites para o que pode ser pensado, através de conceitos pedestres: associa-se fascismo à “extrema-direita” (termo que os fascistas nunca usaram para se auto-definirem), diz-se que então os progressistas são opositores do fascismo e da direita, ao mesmo tempo em que também odeiam judeus e Israel (bar mitzvah é considerado “reaça” demais em um dos textos), e detestam o liberalismo e o capitalismo, dizendo que quanto mais liberal, mais é “reaça” e de direita, crendo que extrema-direita é a hiper-privatização, ao mesmo tempo em que a vida dissociada do Estado é associada com o fascismo Tutto nello Stato, niente al di fuori dello Stato, nulla contro lo Stato – e se você aponta qualquer contradição nisso, você é que não sabe brincar com esses conceitos chulé, você que é fanático obscurantista, você que não conhece a complexa realidade da mentalidade esquerdista – tão bem descrita por Lionel Trilling em seu clássico The LIberal Imagination.
Assim se cria a conceitofobia, o medo primevo e brutal de conceitos mais sólidos do que o lugar-comum da linguagem banal do dia-a-dia, conceitos que vão além dos limites do que é permitido pensar e do que é anátema, pecaminoso, sujo, proibido.
É a “fé metástica” de que nos fala Eric Voegelin: a fé que odeia a realidade, tendo mais amor pela opinião (filodoxia) do que amor ao saber (filosofia) e que quer reformar toda a estrutura da realidade – para tal, não pode senão repudiar a realidade com medo dela, achando-se por isso “crítico” do que é simplesmente verdadeiro.

Conclusão

Ser “reaça” é apenas saber das coisas, e não querer moldar os outros conforme a sua imagem e semelhança – o que fazem desde Lenin com suas fazendas coletivas a Kim Jong-un exigindo o mesmo corte de cabelo para toda a Coréia do Norte (ou Pol-Pot, mandando ser morto por crocodilos quem fosse alfabetizado ou usasse óculos). Ser reaça é ser contra aqueles regimes onde você pode sair fuzilando quem discorda de você.
Mas eu não me incomodaria se uma pessoa “de esquerda” me xingasse de alguma coisa séria. Me chamar de idiota, bobo, ingênuo, cego, me mandar à merda ou mandar me foder, com medo de virar pó ao me ouvir – ou, como o modismo do pensamento único agora exige, de coxinha, de fascista, de olavete.
A esquerda chama todo mundo de quem discorda de “racista”, de “homofóbico”, de “fascista” justamente porque sabe que os xingados odeiam racismo, homofobia, fascismo e que possivelmente se calarão quando tiverem sua opinião associada a estas coisas das quais têm nojo mortal. Se fossem de fato racistas, homofóbicos ou fascistas as pessoas simplesmente diriam “Sim” e continuariam na mesma. Não é o que a esquerda planeja.
Dói um pouco ser xingado de fascista, de saudosista da ditadura, de branco, de rico, de homofóbico, de católico, de racista, de nazista e de “fascista” por gente que quer tudo dentro do Estado, tudo para o Estado, bem ao contrário de você.
Mas, acredite: nada dói mais do que ser “xingado” de “reacionário” por pessoas que querem nos ofender, mas nos elogiam sem perceber.

Flavio Morgenstern - excerto (com intervenções reacionárias) do texto "Parem de achar que 'reacionário' é ofensa".

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Alea jacta erat


Nos tempos de Fernando Henrique Cardoso a bandeira da Bahia dividia, com o Pavilhão Nacional, o espaço no cabeçalho do site oficial da República, numa deferência muito especial e exclusiva concedida ao senador Antônio Carlos Magalhães, poderoso aliado do presidente. Corria solta a anedota na qual o diabo evitava a morte do ex-governador baiano, porquanto, se tal ocorresse, seria este quem, daí por diante, iria mandar em todos os círculos infernais. Confiante, ACM enroscou-se na linha dada por FHC; e sua menor perda foi o cabeçalho.

Nesta quarta-feira, dia 2 de dezembro de 2015, Dilma Rousseff aplicou em Eduardo Cunha uma rasteira que terá superado aquela que FHC passou em ACM. O agora politicamente defunto presidente da Câmara nunca há de esquecer que uma amadora lhe aplicou um golpe de mestre, ao livrar-se da lei de responsabilidade fiscal (única grande cartada do impeachment) dentro da casa dele, por duas vezes seguidas.

Promessas descumpridas são característica dos nossos governos, mas, excluindo-se a possibilidade de que tudo não passe de um plano dentro de um plano dentro de um plano, o fato de Cunha acreditar num compromisso com Dilma foi o cúmulo da ingenuidade. 

Há os que afirmem que Cunha está apenas colhendo o que plantou, e que a Polícia Federal, o Ministério Público, o TCU e o STJ só agora estão agindo  para desbaratar quadrilhas conhecidas há séculos porque o governo atual lhes deu liberdade para agir. O fato é que a PF e o MP só estão levando a cabo essa devassa intitulada Operação Lava-Jato porque numa bela manhã encontraram, por acaso, a ponta do fio de um crime tributário num posto de gasolina em Brasília e começaram a puxá-lo, quando ninguém, nem o governo, suspeitava que isso fosse atingir os principais esquemas de enriquecimento ilícito em operação, desde sempre, no país. Esquemas, aliás, que o PT prometia combater e aos quais -- como se vê todos os dias nos jornais -- acabou por aderir maciçamente. Não fosse a estratégia de "vazamentos" na imprensa, os órgãos investigativos e fiscalizadores estariam manietados como sempre.


A cartada de mestre do governo foi chamada, ontem, de "ajuste fiscal"; mas, na prática, é apenas o ajuste da lei para que nela caiba o que seria, em qualquer país com real separação de poderes, um crime de responsabilidade. Levantou-se que, há alguns anos, o presidente norte-americano também se viu na necessidade de modificar o limite de endividamento do governo, sendo isso, portanto, igualmente aceitável no democrático Brasil. Falácia. Nos EUA, Obama pediu permissão antecipada para mover a margem em uma economia onde cem bilhões de dólares são troco; aqui, Dilma usou -- mal -- as nossas suadas reservas sem perguntar nada a ninguém, levando o país à recessão; e conseguiu que o déficit bilionário e histórico decorrente fosse aprovado pelo Congresso. Isso tem um nome, e não é "ajuste fiscal", tampouco "governo do povo, pelo povo e para o povo". O governo une-se a criminosos e, em troca de liberdade de ação, lhes dará refúgio contra a cadeia, criando impunidade por meio de sucessivas e oportunas mudanças das normas legais. A presidência da câmara é um preço baixo para uma das quadrilhas (a do PMDB, que é governo) pagar.

O prêmio de consolação será a aprovação da lei de repatriação da poupança suíça, que lavará as economias de todos os criminosos e livrará da prisão todas as quadrilhas. Essa também será uma jogada magistral, mas aplicar golpe contra a sociedade é lugar-comum e nem tem graça, pois a gente não sabe jogar.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Por mais e melhores azuis, vermelhos e auriverdes




A Associação dos Juízes Federais defendeu, em um encontro realizado em Fortaleza na penúltima semana de novembro de 2015, a adoção de medidas de combate à corrupção inspiradas naquelas adotadas pelos EUA. Os norte-americanos pressionam todos os países com os quais mantêm relações comerciais pela adoção de providências similares (apesar de sua sensibilidade no tocante a questões classificadas como sendo de segurança nacional, como no caso Snowden).

A proposta da AJUFE prevê recompensas vultosas para quem denunciar esquemas de corrupção. A recompensa só será paga se o denunciante não tiver qualquer participação no crime apontado, o que não se aplica aos casos de delação premiada. O valor da recompensa pode variar entre 10% e 20% da multa aplicada aos entes denunciados. Para se ter uma ideia do que isso representa, no caso da Lava-jato, até a data de publicação deste post, as multas chegam a R$ 200 milhões. O presidente da ANPR justifica os elevados valores das recompensas afirmando que os denunciantes podem vir a enfrentar dificuldades profissionais após revelarem que suas empresas ou seus superiores no governo cometeram crimes. O CADE propôs a aplicação de multas adicionais às empresas que retaliarem seus empregados após a revelação de delitos.

Devemos implantar imediatamente essas ações, porquanto comprovadamente moralizadoras do ambiente de negócios e, em especial, da relação entre o  interesse privado e a coisa pública.

Com essas medidas estaremos simultaneamente aumentando a competitividade, promovendo eficiência na gestão pública e trazendo transparência à política, assim beneficiando a toda a sociedade com uma única tacada -- com o bônus de criarmos uma nova categoria de atividade muito bem remunerada, que renderá dezenas de bilhões de Reais anualmente aos cofres públicos.

A experiência estadunidense e alguns pronunciamentos recentes de autoridades brasileiras também devem nos inspirar a definir de forma objetiva o que pode e o que não pode ser inserido em alegações de segurança nacional, de modo a impedir que imunidades, cargos e mandatos sejam utilizados para proteger criminosos ou para inibir denunciantes.


Posteriormente poderemos até conseguir tornar ilegais algumas das pequenas idiossincrasias cotidianas do poder, como, por exemplo, o financiamento de festas seis estrelas em resorts paradisíacos, promovido por grandes empresas em proveito dos membros de associações como a AJUFE -- e que representam um conflito de interesses com potencial de vulnerabilizar a sociedade. Como se sabe, não existe almoço grátis.

domingo, 5 de julho de 2015

Tudo se repete


Os ciclos históricos sucedem-se com uma rapidez estonteante. Há pouquíssimo tempo costumávamos cantar no escuro canções que já retratam o momento atual, como o protesto disfarçado de carnaval de Ivan Lins:


"Acabou toda essa brincadeira 
Não há jeito de ser diferente
Como sempre chegou quarta-feira
E a praça não é mais da gente
Andam soltos fantasmas e bruxas
Lobisomem em noites de lua
O saci dança em noites escuras
E ninguém tá seguro nas ruas
Tudo se repete, oh maninha, como antigamente
E o diabo gosta, oh maninha
Arrepia a gente
As igrejas de portas trancadas
Já não entra, nem sai mais milagre
As pessoas de boca fechada
Vão fazer o jejum que lhes cabe
Clareando a sexta-feira santa
Segue a fila de velas acesas
Vêm cantando e o som se agiganta
Orações pra quem não tem defesa
Procissão de bastões e vassouras
Estilingues, bodoques e pedras
Canivetes, facões e tesouras
Aleluia, é o quebra-quebra
É a dança do queira-ou-não-queira
É vingança, é um Deus-nos-acuda
É o malho, é o fogo, a fogueira
É o povo na pele de Judas
Tudo se repete, oh maninha, como antigamente
E o diabo gosta, oh maninha
Arrepia a gente".
(Ivan Lins, "Quaresma")

Dubito ergo cogito; cogito, ergo sum.


Neste momento em que travamos com outros brasileiros discussões acirradas a respeito da segurança pública, em especial sobre a questão da maioridade penal, decidi guardar alguns trechos da batalha.

Segundo informado pelo professor Elvino Bohn Gass através do site Pragmatismo Político (citando dados da UNICEF), apenas 0,01% dos jovens abandonados pelo Estado e provenientes de lares desestruturados entram para o crime. Ou seja, 99,99% dos jovens em situação de vulnerabilidade decidem ser cidadãos úteis, dignos, honestos. Uma percentagem ínfima decide que é mais fácil apropriar-se dos bens de consumo de outras pessoas, numa forma danosa de egoísmo, causando às suas vítimas susto, sofrimento, dor e, frequentemente, morte. Isso é totalmente errado, e as medidas sócio-educativas aplicadas nos últimos vinte e cinco anos, desde a origem do ECA, não corrigiram o problema da criminalidade infanto-juvenil. Esses jovens abandonam a escola cedo, prejudicando inclusive o acesso de suas famílias (que existem, sim, apesar de desestruturadas) a programas como o Bolsa-família. Os governos e organizações de DH se sucedem, levantando bandeiras em defesa desses jovens criminosos sem, contudo, chegarem a qualquer resultado positivo, defendendo a inimputabilidade e penas brandíssimas que geram sensação de impunidade e até de incentivo, produzindo mais crimes e mortes evitáveis, envergonhando e enlutando a toda a sociedade. As perguntas que o governo e essas organizações de DH não se fazem são: o que acontece com as vítimas, mesmo as que não são assassinadas, mas que são, por exemplo, retalhadas com caco de vidro por chamarem a polícia, como aconteceu ao segurança do BarraShopping há poucas semanas? Esse segurança voltará ao trabalho? O que vai ser de sua família, se os criminosos encontrarem seu endereço e fotos dos filhos em sua carteira? Não se busca separar os maus e os bons. Busca-se evitar que os 0,01% maus, incorrigíveis e reincidentes, prejudiquem a toda a sociedade, rapinando e matando impunemente cardiologistas, professoras e faxineiros, desestruturando outros lares e atingindo as crianças e os adolescentes que perdem seus chefes de família. O crime deve ser punido, não importando a idade do criminoso. Sim, de forma adequada, respeitosa e com o máximo rigor legal. Mostrar claramente a esses jovens, desde a mais tenra idade, que o crime não compensa, é nossa obrigação como pais, cidadãos e seres humanos.

domingo, 31 de maio de 2015

Perguntar carece: como não fui eu que fiz?

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.
- Fernando Pessoa, "Não Sei Quantas Almas Tenho".
- Tunai e Milton Nascimento, "Certas Canções"

segunda-feira, 2 de março de 2015

A Estrada Aberta

- Led Zeppelin


Oi!Você tem aquilo de que eu preciso
Talvez até mais do que o suficiente
Caminhe um pouco comigo
Você tem tanto!

Muitas vezes eu amei um objetivo
Muitas vezes fui ferido
Muitas vezes olhei, pasmo, ao longo da estrada aberta.

Muitas vezes eu menti para mim,
Muitas vezes eu ouvi.
Muitas vezes eu me perguntei: "o que ainda há para saber"?

Muitos sonhos se tornam realidade
E alguns são recobertos de prata
Eu vivo pelo meu sonho e por um punhado de ouro

Amadurecido é aquele que sabe o que perdeu:
Muitos, muitos homens
Não conseguem ver a estrada aberta

"Muito" é uma palavra que apenas nos deixa intrigados
Meditando sobre algo que realmente temos que saber.

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- Uma interpretação muito particular de "Over the Hills and Far Away" de Jimmy Page & Robert Plant - Houses Of The Holy, 1973.




sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Iluminação, corrupção e busca

Prefiro Joni Mitchell cantando "Black Crow", mas a apresentação de Diana Krall no Youtube tem melhor qualidade. Certas canções que ouço cabem tão dentro de mim que perguntar carece: "como não fui eu que fiz?"

Neste momento de escolhas tão importantes, vejo-me tomando o trem: os trilhos são fixos e o destino é conhecido, mas aonde a viagem nos levará?




Black Crow

by Joni Mitchell   

There's a crow flying
Black and ragged
Tree to tree
He's black as the highway that's leading me
Now he's diving down
To pick up on something shiny
I feel like that black crow
Flying
In a blue sky

I took a ferry to the highway
Then I drove to a pontoon plane
I took a plane to a taxi
And a taxi to a train
I've been traveling so long
How'm I ever going to know my home
When I see it again
I'm like a black crow flying
In a blue blue sky

In search of love and music
My whole life has been
Illumination
Corruption
And diving diving diving diving
Diving down to pick up on every shiny thing
Just like that black crow flying
In a blue sky

I looked at the morning
After being up all night
I looked at my haggard face in the bathroom light
I looked out the window
And I saw that ragged soul take flight
I saw a back crow flying
In a blue sky
Oh I'm like a black crow flying
In a blue sky

domingo, 5 de outubro de 2014

Eleições 2014

Sujeira, desinformação, baixaria, fanatismo partidário auto-imposto, fascismo, dois pesos e duas medidas: essas são as eleições brasileiras em 2014.



domingo, 6 de julho de 2014

Prisão Patriotismo

em 03/07/2014 às 17:48 | Artigos e ensaiosMente e atitudePrisões
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É deliciosa a sensação de irmandade que nos acolhe quando estamos em nossa terra, cercadas de iguais, praticando nossos costumes, ouvindo nossa língua, nosso sotaque.
É reconfortante fazermos parte de um estado-nação que nos reconhece como pessoas cidadãs, que garante nossos direitos humanos fundamentais, que nos fornece um passaporte aceito por outras nações.
Infelizmente, essa nossa sensação de comunidade, que não é menos real, concreta e verdadeira por ter sido imaginada, fabricada, construída, muitas vezes nos leva a odiar ou desprezar as outras pessoas que não nasceram no nosso chão, que têm outros costumes, outras línguas, outros sotaques.
Então, se amamos exaltadamente essas abstrações políticas imaginárias, com seus simbolozinhos e musiquinhas; se nos dispomos a matar e morrer por elas; se engolimos acriticamente o discurso nacionalista-excludente do “ame-o ou deixe-o”, então, sim, o patriotismo pode ser uma prisão.
O patriotismo das leoninas
Como pessoas humanas, nossa tendência é sempre naturalizar o mundo que recebemos. As coisas são assim porque sempre foram assim porque sempre serão assim.
Para nós, é tão normal esse mundo onde as pessoas se dividem e se identificam com base no pedaço de chão onde nasceram que mal conseguimos perceber o quanto esse sistema é arbitrário e convencionado.
Por que não criarmos outras irmandades?
Se existem duas pessoas competindo, o natural, o normal, o esperado, o óbvio, é que eu torça pela pessoa brasileira.
Mas por que me identificar com linhas arbitrárias traçadas no chão e com as pessoas que compartilham comigo o acidente histórico e fortuito de ter nascido no espaço compreendido dentro dessas linhas?


Por que não traçar outras linhas arbitrárias para definir nossas lealdades?
Ao invés de traçar linhas arbitrárias no espaço, por que não traçar, digamos, linhas arbitrárias no tempo?
Por que não torcer para a pessoa que é aquariana como eu?
Por que não torcer pelas pessoas que têm o mesmo gênero? A mesma cor? A mesma profissão? A mesma classe social? O mesmo tipo sanguíneo?
Por que todas essas opções nos soam tão estranhas, insólitas, injustificadas, mas torcer pela pessoa que nasceu no mesmo país que nós, por outro lado, nos parece tão autoevidentemente natural?
Será mesmo que quaisquer duas mulheres, quaisquer dois metalúrgicos, quaisquer dois leoninos não têm mais em comum entre si do que, digamos, um amapaense branco rico e uma gaúcha canhota faxineira, uma sergipana capricorniana recém-nascida e um mato-grossense loiro mudo?
Por que o fato de terem nascido no mesmo estado-nação parece compensar e superar todas as outras diferenças?
Quem foi que nos convenceu que, apesar de suas inúmeras, óbvias, gritantes diferenças étnicas, linguísticas, religiosas, etc, que uma paranaense e uma baiana têm mais coisas em comum do que diferenças?
Os gaúchos dos pampas argentinos e riograndenses, apesar de, na prática, fazerem parte de uma mesma nação, de terem os mesmos hábitos, costumes, estilos de vida, etnias, etc, ficaram séculos se matando ferozmente, alegremente, seguindo as ordens de metrópoles com as quais não tinham nada em comum, que pelo contrário desprezavam, derramando seu sangue para defender seus compatriotas da Terra do Fogo e da Amazônia, que nem conheciam e com quem não tinham nada em comum.
Que força é essa capaz de fazer esses homens ignorarem sua óbvia irmandade e se prontificarem a abrir mão de suas vidas em nome de uma outra irmandade, mais etérea e mais abstrata?
“Esses gringos burros que acham que falamos espanhol!”
Um dos sintomas do patriotismo arrogante brasileiro é a nossa irritação irrefreável diante de qualquer ignorância estrangeira sobre nós.
Muitas das pessoas leitoras com certeza já ficaram indignadas com “gringos burros” que achavam que no Brasil se falava espanhol ou que nossa capital era o Rio de Janeiro ou Buenos Aires.



Mas quantas dessas pessoas leitoras indignadas sabem qual é a capital da Mongólia ou que língua falam na Nigéria?
Para não ir tão longe, quantas sabem qual é a capital do Suriname ou que língua falam na Guiana?
Para ficamos somente na nossa própria abstração política, quantas sabem qual é a capital de Roraima, Tocantins, Sergipe?
Algumas pessoas leitoras talvez até saibam a resposta para essas perguntas, mas isso não quer dizer que:
1.    outras pessoas tenham obrigação de saber, ou que;
2.    essas pessoas-que-sabem, por mérito de seus “conhecimentos superiores”, tenham adquirido assim o direito de hostilizar quem não sabe.
Poucas atitudes são mais narcisistas do que essa constante naturalização do nosso conhecimento: considerar óbvio e obrigatório que todas as pessoas têm que saber aquilo que sabemos, ao mesmo tempo em que achamos que ninguém tem obrigação de saber aquilo que não sabemos.
Pois é óbvio que todos têm que saber a língua falada no México (afinal, até eu sei!) mas é igualmente óbvio que ninguém tem obrigação de saber a língua falada na Guiana (afinal, nem eu sei!).
A maioria das pessoas brasileiras, entretanto, não sabe responder essas perguntas. Não sabem a capital da Guiana Francesa nem o idioma oficial do Congo.
Ficam, inclusive, ainda mais indignadas quando chamo a atenção para esse fato: retrucam que não é a mesma coisa. Que não dá pra comparar o Brasil com a Indonésia ou com a Costa Rica. Que Roraima é um estado desimportante. Que ninguém tem obrigação de saber essas coisas.
Ou seja, suas respostas indignadas expõem e exemplificam justamente o lado mais mesquinho do nosso narcisismo patriótico arrogante.
Pois o que torna o patriotismo uma prisão é justamente incutir em nós essa certeza absoluta e peremptória que o Brasil é intrinsecamente mais importante que a Mongólia ou que a Jamaica. Que as pessoas do mundo têm que saber a língua falada no Brasil (ou senão são BURRAS) mas que, francamente, ninguém têm obrigação de saber a língua falada na Malásia.
Nosso país não importa, e nem nós
Poucas coisas são mais importantes do que encararmos de frente nossa suprema desimportância.
Somos desimportantes enquanto pessoas individuais, primatas mamíferas de vidas curtas, uma entre sete bilhões. Somos desimportantes enquanto pessoas nacionais, cidadãs de um estado nacional recentíssimo e periférico. Somos desimportantes até como planeta, um entre bilhões e bilhões, orbitando uma estrela mediana e medíocre.


Dá para qualquer pessoa passar a vida inteira sem jamais pensar no Brasil e isso não faria dela uma pessoa inferior, inculta, ignorante.
De fato, grande parte das pessoas humanas mais incríveis, generosas, inteligentes, que já existiram nos últimos duzentos anos jamais dedicaram mais do que poucos minutos, ou mesmo segundos, para reconhecer o fato de que, em algum lugar, existia uma nação chamada Brasil. Não saberiam que língua falamos, ou qual é a nossa capital. E daí?
Sejamos sinceras: quantas de nós, pessoas leitoras brasileiras, já dedicamos muito tempo para pensar sobre a Romênia, ou sobre o Zaire, ou sobre Honduras?
Amar o Brasil faz tão pouco sentido quanto odiá-lo
Quando publiquei uma primeira versão desse texto, quase dez anos atrás, muitas pessoas leitoras perceberam nele uma crítica ao Brasil e correram para concordar:
“É isso aí. O Bananão é mesmo uma bosta. É por isso que essa merda não vai pra frente. Foda-se o Brasil mesmo! etc.”
Mas meu texto não está fazendo nenhuma afirmação qualitativa sobre o Brasil. Não ataca, nem defende. O Brasil não é pior nem melhor que outros Estados-Nações.
Nesse texto sobre patriotismo, os exemplos são brasileiros somente porque o público-alvo é brasileiro.
Odiar o Brasil por seus muitos defeitos faz tão pouco sentido quanto amá-lo por suas muitas qualidades.
O Brasil, essa entidade abstrata incorpórea inanimada, não tem como perceber nem retribuir nossos ó-tão humanos sentimentos, sejam eles de lealdade ou de desprezo, de gratidão ou de raiva.
Orgulho de ser brasileiro
Eu respeito e valorizo o Brasil.
O Brasil é o estado nacional que garante os meus direitos humanos básicos. Foi o Brasil que me deu as estradas, a segurança pública, a paz social, a estabilidade institucional, a saúde pública, a água potável, etc etc, que permitiram que eu me desenvolvesse como pessoa humana. Mais especificamente, foi o Brasil que pagou pela excelente educação superior que obtive na universidade pública onde estudei.
Nada disso quer dizer que eu vá amar, ou mesmo me orgulhar, dessa abstração política abstrata inumana incorpórea chamada Brasil.
Em troca de tudo o que ele me ofereceu e ainda oferece, o Brasil me exige ou pede algumas obrigações, como ser reservista das Forças Armadas, ser mesário, pagar impostos, obedecer leis – obrigações que eu, em larga medida e de acordo com a minha consciência, cumpro.
Mas, gostando eu ou não do Brasil, sendo eu grato ou não ao Brasil, essa não é uma relação afetiva: é uma relação contratual (o tal Contrato Social), regulamentada pela Constituição da República.
Meu amor eu reservo para seres animados.
* * *
O patriotismo é uma forma de apropriação indevida.
A ginasta treinou a vida inteira desde a infância. Fez todo tipo de sacrifício. Não se divertiu. Castigou seu corpo. Enfrentou todos os entraves institucionais em seu caminho. Então, coroou todos esses esforços conquistando a medalha de ouro nos jogos olímpicos.
E tudo para que, no dia seguinte, milhões de pessoas que nunca lhe ajudaram em nada, que nunca nem lhe levaram uma aguinha durante os treinos, possam dizer:
“Levamos o ouro na ginástica olímpica!”
Levamos? Nós? Nós quem?
* * *
Um dos meus escritores favoritos, judeu norte-americano, conta a seguinte história.
Ele estava conversando com um amigo, também judeu, que disse, em tom de orgulho e confidência:
“Sabia que nós judeus somos zero vírgula quase nada da humanidade mas ganhamos dezenas por cento dos prêmios Nobel? Não é de se orgulhar?”
O escritor pensou um pouco e respondeu:
“E você sabia que nós judeus somos zero vírgula quase nada da população dos Estados Unidos mas somos quarenta por cento dos estelionatários?”
O amigo ficou chocado:
“Sério?”
“Sério. Chega a dar vergonha de ser judeu, né?”


Mas o amigo foi veemente:
“Claro que não, ué! Eu nunca cometi estelionato, por que teria vergonha?”
“Bem, esse número eu acabei de inventar agora, mas aqueles prêmios Nobel também não foi você que ganhou. Por que tem orgulho deles?”
* * *
Eu não tenho orgulho de ser destro. De ter 1,80 de altura. De ser aquariano. De ter olhos e cabelos castanhos.
Por que teria orgulho de ser brasileiro?
Ser brasileiro, assim como ser destro, não é mérito meu, não é nada que eu fiz.
É uma circunstância fortuita totalmente fora do meu controle.
* * *
Ter orgulho de nossas afiliações coletivas é tão comum e normatizado que nunca nem pensamos a respeito. Vivemos cercados de pessoas que têm orgulho de ser brasileiras, católicas, cariocas, flamenguistas, mangueirenses.
É normal e aceitável um torcedor brasileiro qualquer falar que somos fodas no futebol, que vamos arrasar todos os outros times, que ninguém joga bola como nós, etc.
Afinal, quem nunca?
Por outro lado, um astro de futebol (uma dessas pessoas que está de fato em campo trabalhando duro para ganhar as partidas) que diga qualquer coisa que demonstre auto-consciência de o quão foda ele é vai enfrentar uma ojeriza generalizada. Será chamado de arrogante, vaidoso, soberbo.
O pecado supremo do vaidoso é justamente quebrar o pacto de silêncio que sustenta nossa auto-estima coletiva.
Para viabilizar nossas vidas, tantas vezes chatas e vazias, precisamos de conquistas coletivas das quais possamos nos apropriar.
Ou, em outras palavras, “ganhamos o penta!”
O que poderia ser mais intolerável do que sermos rudemente lembrados, e, pra piorar, por uma pessoa mais rica, mais famosa, mais sarada, mais bonita, que, na verdade, foi ELA que ganhou o penta, não nós?
É claro que vamos odiar esse babaca.
O patriotismo é uma comunidade imaginada
Somos uma espécie em busca de padrões.
Talvez nossa maior habilidade enquanto espécie seja olhar para o mundo a nossa volta, buscar padrões e, em cima deles, criar narrativas.
Desde a pré-história, já levantávamos os olhos para o céu, víamos um punhado de pontos de luz e logo já criávamos a constelação de escorpião ou de touro, cada uma decorada com longas eelaboradas historinhas de morte e traição, que terminavam sempre com os deuses transformando alguém em estrela.
Hoje em dia, o jornalismo esportivo durante a Copa do Mundo é pura literatura, onde longas e épicas narrativas nacionais se entrecruzam ao infinito.
A seleção de Mordor não ganha da Latvéria desde 1963! O maior jejum na história das Copas foi de Oz, que ficou sem ganhar um jogo entre as Copas de 1133 e 1345!! Hoje é dia da revanche: vai ser a oportunidade de Avalon se vingar das duas derrotas que sofreu nas mãos da Ciméria, em 1928 e 1969!!! Sempre que Asgard enfrenta Westeros em um dia par, ela perde: será que o padrão vai se repetir hoje também, Galvão?! Etc, etc.
Nada contra o futebol e nada contra essas narrativas épicas, que não são menos reais e eletrizantes por serem imaginadas.
Afinal, não fossem essas narrativas simbólicas, que nos colocam dentro de uma tradição centenária de dramas emocionantes e inacreditáveis reviravoltas, uma partida de futebol seria apenas uma hora e meia de milionários brincando de bola para nos distrair do fato de que nunca, nunca teremos o estilo de vida privilegiado que eles têm.
Mas existe uma diferença.



Acompanhamos a novela, e odiamos a vilã, e amamos a mocinha, ou vice-versa, e aqueles fatos que nunca aconteceram com pessoas que nunca existiram realmente nos fazem sentir emoções fortes e verdadeiras, choramos, gargalhamos, odiamos.
Depois que desligamos a TV, porém, por mais que tenhamos nos emocionado profundamente, sabemos que nada daquilo era verdade, e que nem a obra e nem nossas emoções deixaram de ter valor por causa disso.
O problema do patriotismo é que, por mais que saibamos da sua ficcionalidade inerente, temos muita dificuldade em desligá-lo.
* * *
Nosso chão é mais concreto que nossa nação
A palavra país veio do italiano paese. No original, não quer dizer somente país ou pátria. Mio paesetambém quer dizer minha vila, minha cidade, meu bairro. Onde quer que eu me sinta em casa.
Uma norte-americana morando no Rio uma vez me contou que ficou no ponto por horas esperando o ônibus parar e nada. Até que percebeu que, aqui no Brasil, você precisa chamar o ônibus, senão ele não para no ponto.
Ser uma pessoa estrangeira é isso: perder horas da sua vida por desconhecer uma regrinha boba. Algo que nunca aconteceria no seu paese.
Mio paese é onde sei todas as regras, onde eu sei me virar. Pombo de cidade grande não morre atropelado.
No meu passaporte, legalmente, sou brasileiro, mas seria muita presunção minha me pensar brasileiro. Não conheço o Brasil. Não sei como as coisas funcionam no Amapá. Não imagino como seja a realidade do Acre. Sou carioca, e olhe lá. A cidade é grande e tem bairros com costumes e realidades que eu também desconheço.
Não vou dizer que amo esse chão. Chão não se ama. Chão é chão. Pedra, terra.
Mas sinto, de maneira profunda e real e concreta, que esse chão é meu.
A geografia nos ensina que o o chão, ou seja, o espaço, não é simplesmente um espaço, mas também é produto, condição e meio das relações humanas. De um modo bem real, eu SOU essas ruas, essas praias, essas montanhas, essas lagoas. Minha vida e minha subjetividade foram moldadas pelo aterro do Flamengo, pela favela do Vidigal, pela lagoa de Marapendi.
O mundo é cheio de problemas: assisto Juno e fico comovido com toda a questão da gravidez infantil, aborto e adoção, mas assisto Tropa de Elite e o filme ME aponta um dedo direto na cara: esse é o problema da minha época, da minha terra, da minha geração.
Na loteria da História, foi essa batata quente que me coube.
O bônus é meu, o ônus também.
Ninguém olha para baixo
Não quero inocentar a metrópole: se o noticiário brasileiro finge que o Equador e a Nigéria não existem, o noticiário europeu e norte-americano também.
O pecado de não olhar quase nunca para baixo (ou seja, de quem consideramos, do alto de nossos preconceitos, que está abaixo de nós) é um dos mais disseminados do mundo.
Somente olhamos, e consumimos a cultura, e imitamos as tendências, e nos interessamos pelas últimas notícias, de quem percebemos como nossos iguais, ou de quem respeitamos e tememos como nossos pretensos superiores.
A diferença é que o Brasil se considera acima do Equador e da Nigéria.
Já os Estados Unidos e a Europa, por seu lado, colocam Brasil, Equador e Nigéria no mesmo saco.
Para o arrogante patriotismo brasileiro, é justamente essa a maior humilhação.
O Brasil, visto de fora
Morei em Nova Orleans por seis anos. Trabalhei no Departamento de Espanhol & Português considerado o segundo mais produtivo do país. A biblioteca da minha universidade tinha o segundo maior acervo latino-americano dos Estados Unidos.
Nas minhas aulas, ensinadas em português, pessoas alunas norte-americanas (mas não somente) liam, no original, autores como José de Alencar, Machado de Assis, Lima Barreto, Rubem Fonseca, Clarice Lispector, Gilberto Freyre, Dias Gomes, Ariano Suassuna, Nelson Rodrigues, entre outros. (E também uma das mais importantes autoras brasileiras de todos os tempos, tão esquecida entre nós, que completaria cem anos em 2014, Carolina Maria de Jesus.)
Apaixonados pela língua e pela cultura brasileira, minhas pessoas alunas não eram somente estudantes de literatura voltadas para uma carreira acadêmica. Em minha sala de aula, havia médicas estudando doenças tropicais, advogadas se especializando em direito internacional, empreendedoras querendo fazer negócios com o Brasil, ativistas buscando trabalhos em ONGs brasileiras.
Minhas pessoas alunas viam o Brasil como uma economia pujante e uma cultura exuberante. Achavam que o Brasil iria longe e queriam fazer parte disso. Consideravam que, no futuro, onde quer que estivessem, falar português e entender o Brasil iria lhes trazer oportunidades pessoais e profissionais.
Antes de sair do Brasil, eu não via nada disso. No exterior, aos poucos, comecei a perceber.
Na universidade norte-americana, eu estudava e trabalhava ao lado de colegas de todos os países da América Latina. Por falta de oportunidades em seus países, iam ficando, ficando e, quando percebiam, tinham feito a vida e a carreira nos Estados Unidos.
Um dos colegas era um homossexual salvadorenho com uma tese brilhante sobre o discurso machista e as imagens fálicas nas eleições latino-americanas. Ele gostaria muito de voltar para El Salvador – mas pra fazer o quê? Nos EUA, ele em breve seria um professor universitário merecidamente bem pago. Em El Salvador, além de sofrer forte preconceito, suas perspectivas profissionais eram minúsculas – e ainda menores por sua orientação sexual.
Apesar de estudar a América Latina e morrer de saudades de seus países, muitas das minhas colegas latino-americanas tinham simplesmente se resignado de que a única maneira de terem vidas dignas como acadêmicas era morando nos Estados Unidos.
Enquanto isso, no Brasil, foram criados 110 novos campi de universidades federais em 27 estados brasileiros somente entre 2003 e 2009 – isso pra não falar da explosão de universidades particulares que, apesar de não terem pesquisa de primeira, oferecem centenas de milhares de empregos para professores e professoras universitárias.
Percebi então que eu, pessoa brasileira, tinha escolhas.
Como tantas colegas, eu poderia fazer a escolha perfeitamente válida de ficar nos Estados Unidos e construir ali uma carreira.
Mas, ao contrário da maioria delas, eu tinha a escolha de voltar para um país com um campo universitário amplo, livre e bem-pago, onde poderia desenvolver as mesmas pesquisas que desenvolveria nos Estados Unidos, onde também poderia construir uma carreira próspera.
E eu tinha essa escolha, ao contrário do meu colega salvadorenho, não por mérito meu ou demérito dele, mas porque éramos ambos herdeiros de milênios e milênios de decisões acumuladas de nossas pessoas antepassadas, que nos trouxeram a esse momento histórico no qual a cidadania brasileira, de fato, oferece uma gama de escolhas que a cidadania salvadorenha não oferece.
Para bem ou para mal, essas abstrações políticas imaginadas que nos dão passaportes e garantem nossos direitos constitucionais também nos limitam e nos possibilitam de diversas maneiras diferentes.
O Brasil, onde não se humilha ninguém
Faz alguns anos, a Espanha começou a deportar pessoas brasileiras, causando um certo alarde na nossa imprensa.
Uma jogadora de vôlei, mesmo tendo sido convidada por um clube espanhol, não pôde entrar no país e ainda foi humilhada pela imigração. Depois de voltar, desabafou:
“Não quero mais sair do Brasil. Aqui, pelo menos, eu não sou humilhada da forma que fui lá na Espanha.”
Entendo como ela se sente. Quando morei fora, também fui humilhado diversas vezes.
* * *
Humilhação é quando temos que ouvir calados
Nova Iorque, imigração do JFK.
Estou com o sobretudo em um braço, a mochila no outro, coisas penduradas por todo corpo.
Quando o oficial da Imigração pede meus papéis, eu estico a mão até ele, documentos dobrados entre os dedos, mas sem desgrudar o antebraço do meu corpo, pra não cair tudo.
Ele faz que vai pegar o papel: quando eu solto, ele tira a mão. Os documentos deslizam vagarosamente até o chão e ele diz:
“Can’t you even unfold it, you lazy sac of shit?”
“Não consegue nem desdobrar o papel, seu saco de merda preguiçoso?”
Lentamente, eu deposito todas as minhas coisas no chão, me abaixo, pego o papel, desembrulho e dou pra ele.
Não foi nem a primeira nem a última vez em que fui humilhado entrando nos Estados Unidos.
* * *
Engoli calado.
Engolir calado dói.
Talvez essa seja a essência da humilhação: quando me xingam, seja um leitor babaca nos comentários ou um mendigo bêbado na rua, eu posso escolher responder ou não – geralmente, não respondo.
Mas é uma escolha.
Quando um oficial da imigração me humilha e não posso responder, aquilo é cancerígeno.
Quando nossa pátria nos humilha, fugir pra onde?
A pessoa brasileira que tem condições financeiras de ser humilhada no exterior costuma ser aquela que nunca é humilhada no Brasil.
Na minha terra, sou dotô, sou sinhozinho. Até nas duras, me tratam com respeito. Do Galeão afora, entretanto, sou só mais um, com cara de latino nas Américas e de árabe na Europa. Não sabem como sou especial, que sou único, que tenho pai rico, que faço doutorado, que escrevo romances, esses estrangeiros ignorantes!
Entretanto, reagir à vergonha voltando correndo para um Brasil idealizado onde não se humilha ninguém é pura ilusão.
Quando me humilham no exterior, tento me colocar no lugar daquelas pessoas brasileiras que são humilhadas todos os dias, em seu próprio país, em todos os seus encontros com o Estado, e não apenas durante as viagens que escolhem fazer.
Quando o oficial da imigração norte-americana me humilha, eu posso fugir de volta para o Brasil.
Quando um policial militar humilha um cidadão brasileiro, carioca, negro, na favela onde mora, ele vai fugir para onde?
Quando uma mulher brasileira é sexualmente assediada e depois desacreditada pela polícia ao tentar dar queixa, ela vai fugir para onde?
Verás que um filho teu não foge à luta
No ano em que completei dezoito anos, prestei o juramento à bandeira, ali no primeiro distrito naval, às margens da baía de Guanabara.
No mesmo grupo, havia vários jovens negros, magros, aparentemente favelados. Na hora de jurar que protegeriam a nação mesmo com a própria vida, mais de metade deles simplesmente riu e pulou esse trecho. O sargento ficou possesso, esbravejou, exigiu respeito. Finalmente, os meninos falaram lá as tais palavrinhas mágicas que os militares tanto queriam ouvir e pudemos todos ir embora.
Eu fui direto para o Galeão, onde a família estava me esperando para passarmos o mês esquiando na Áustria. No caminho, me lembro de pensar coisas como “que falta de respeito”, “é por isso que o Brasil não vai pra frente”, etc.
Demorei muito para entender que o Estado tinha significados diferentes para mim e para aqueles meninos. Mais importante, que o Estado se comportava de forma diferente comigo e com aqueles meninos.
Que as forças de proteção e repressão do Estado tinham sido criadas justamente para proteger a mim e reprimir a eles. Sempre.
(Existe um teste simples para saber se você é privilegiado. Digamos que está num bar, começa uma confusão e, de repente, soa a sirene da polícia, você: 1) fica aliviado, pois está salvo e tudo vai se resolver; ou 2) fica tenso, segura a identidade entre os dedos e evita movimentos bruscos?)
Falta de respeito não era aqueles jovens brasileiros se negarem a morrer pelo Brasil.
Falta de respeito era o Brasil, depois de dezoito anos tratando-os como pivetes e bandidos, ainda ter o descaramento de pedir que morressem por ele.
Nossa pátria é onde não nos humilham
No Brasil, eu, homem, branco, hétero, cis, classe média, sou uma das poucas pessoas verdadeiramente tratadas como cidadãs.
Enquanto isso, vivo cercado de pessoas mulheres, negras, trans, pobres, homossexuais, sem-teto, portadoras de deficiência, etc, parte de um enorme exército de cidadãs de segunda classe, desfrutando de ainda menos direitos do que eu desfrutava como imigrante latino nos Estados Unidos.
A questão, portanto, não é ser patriota ou antipatriota, estar em nossa terra ou em outra terra.
A questão é outra: se não somos respeitadas como pessoas e como cidadãs, de que adianta estar em nossa pátria? Aliás, para que serve essa pátria? A quem essa pátria serve?
Nossa pátria é onde nos respeitam.
Só uma pátria que nos respeita tem o direito de nos pedir para arriscar a vida por ela.
Talvez fosse o caso de derrubar tudo
Minha ex-mulher nasceu em uma pequena e próspera cidade no interior da Amazônia. Veio morar comigo no Rio e se deparou, pela primeira vez, com a população de rua em nossas calçadas.
Para minha imensa surpresa de carioca, a mera visão de uma criança de rua já era o suficiente para levá-la às lágrimas. Para ela, era como se uma única criança dormindo ao relento já fosse uma enorme tragédia. (E é!)
Com o tempo, para não enlouquecer, para poder funcionar como ser humano, minha ex-esposa foi criando a mesma couraça de insensibilidade social que quase todas as cariocas já trazem do berço.
É uma educação do olhar: você se treina para não ver, para não se importar, para não cair de joelhos paralisada pelo horror.
Mas, se precisamos ser insensíveis para funcionar em sociedade, talvez essa sociedade é que não devesse funcionar.
Talvez fosse o caso de derrubar e fazer outra.
Para que serve essa pátria? Para quem serve essa pátria?
Hoje, economistas admitem que o salário mínimo é desumano e indigno, mas argumentam, com resignação, que o país iria à falência se pagasse um salário mínimo humano e digno.
Ontem, cafeicultores admitiam que a escravidão era desumana e indigna, mas argumentavam, com resignação, que o país iria à falência se as lavouras fossem plantadas por pessoas assalariadas.


Seja na época colonial ou no governo Lula, o consenso entre as pessoas brasileiras que vivem em condições humanas e dignas é sempre o mesmo: o Brasil só pode existir enquanto entidade política viável se mantiver grande parte das outras pessoas brasileiras em condições desumanas e indignas.
Mas é viável uma entidade política que não consegue nem mesmo garantir condições humanas e dignas para a maioria de sua população?
Nesse caso, existir para quê? Existir para quem?
Ao ver a bandeira brasileira servindo de proteção a navios negreiros, bradou Castro Alves:
Antes tivesse sido destruída na batalha do que servindo a um povo de mortalha.
Patriotismo e história
O mundo em que vivemos não é o único que poderia ter sido.
A História tende a apagar a própria História: de tanto ser repetida e estudada pelas novas gerações, ela se transforma em predestinação e nos apresenta o mundo de forma naturalizada, como se tudo tivesse acontecido exatamente como tinha de acontecer.
O castigo pela derrota é a exclusão retroativa da existência. Quem esteve a um triz da vitória total desaparece como se nunca houvesse nem mesmo competido.
Os “laterais possíveis” desaparecem.
Mas o mundo foi construído para ser do jeito que é hoje. Ele poderia facilmente ter sido construído de maneira diferente.
E pode, ainda hoje, ser desconstruído e reconstruído.
Para isso, entretanto, precisamos conhecer as pessoas coadjuvantes, as derrotadas, as esquecidas da História.
Os grupos jacobinos que não conseguiram tomar o poder durante a Revolução Francesa. Osgrupos anarquistas que não conseguiram fazer frente aos bolcheviques. As rebeliões regionais que não conseguiram separar o Brasil durante a Regência. Os franceses protestantes que não conseguiram fazer da Baía de Guanabara um novo lar para exercerem sua religião.
Talvez suas causas fossem até erradas. Talvez estivessem mesmo na contramão da História. Com certeza, fracassaram de forma espetacular em seus objetivos.
Mas vale a pena falar nelas nem que apenas para sempre lembrar que nada estava predestinado.
O patriotismo é o culto aos vencedores
A História, disciplina criada para validar e dar arcabouço ideológico aos jovens Estados Nacionais do século XIX, já nasceu do lado dos vencedores. Não existe patriotismo possível sem uma História Nacional renovando-o e naturalizando-o de geração em geração.
Os atuais grupos dominantes são herdeiros dos antigos conquistadores. O discurso patriótico que canta as vitórias nacionais passadas sempre beneficia os atuais poderosos.
Todos os vencedores, de todos os tempos, participam da mesma procissão triunfante, na qual os dominantes de hoje pisam e passam por cima das massas derrotadas, confirmando, ilustrando e validando sua superioridade, e trazendo nas mãos seu botim de guerra: a cultura. Os pretensos tesouros culturais da humanidade.
Por isso, não pode existir nenhuma obra de arte que não seja ao mesmo tempo um inventário e um testamento de barbárie. Que não esteja ensopada de sangue. Que não seja cúmplice dos poderosos.
O desafio é utilizar nossa boa, velha e ensanguentada História Nacional para promover um novo tipo de patriotismo, um patriotismo que subverta e quebre a continuidade histórica da narrativa dos vencedores, que recupere as tradições revolucionárias dos vencidos, que exponha a mentira da naturalização do mundo, que nos convide a todas a recriar esse mundo de acordo com desejos e aspirações mais igualitários e mais humanos.
Davi, de Michelângelo, não é inocente dos crimes dos financistas florentinosDom Casmurro não é inocente dos crimes da escravidão. Nós não somos inocentes do Amarildo.
A pátria é uma desmemória coletiva
A essência de uma pátria é a memória coletiva de suas integrantes.
Uma das principais diferenças entre pessoas uruguaias e brasileiras é que todas as uruguaias sabem quem foi Artigas (feroz inimigo do Brasil, maior herói nacional, “Jefe de los Orientales”, “Protector de los Pueblos Libres”, etc) e aqui, quase ninguém. Por outro lado, aqui sabemos quem foi Tiradentes e lá, não.
(Um exemplo: a batalha de Tacuarembó, em 1820, foi a última e mais decisiva do conflito que chamamos de Guerra contra Artigas — um nome interessantemente personalista, como se o Brasil estivesse lutando só contra um homem e não contra o desejo de independência de todo um povo. A derrota dos uruguaios em Tacuarembó sepultou seu sonho de autonomia por dez anos, selou o domínio luso-brasileiro do país e foi a última batalha de Artigas, que se retirou para o Paraguai e nunca mais voltou para a sua terra.
O comandante português que derrotou decisivamente o maior herói uruguaio foi José Maria Rita de Castelo Branco, Conde da Figueira. Mas, do ponto de vista luso-brasileiro, essa batalha é tão insignificante que a página da Wikipédia em português dedicada a ele nem mesmo menciona sua vitória.)


Talvez ainda mais importante, a essência de uma pátria é a desmemória coletiva do seu povo, um gesto ativo de esquecimento de um saber compartilhado.
As pessoas uruguaias são as que esqueceram a guerra civil fratricida que passou para a História com o sugestivo nome de Guerra Grande, entre 1836 e 1852, deixando o país enfraquecido e destruído (e, aliás, novamente dominado pelo Brasil) enquanto as brasileiras são as que esqueceram que o seu país matou quase todos os homens adultos do Paraguai e ocupou o país por onze anos, um período no qual, entre muitas coisas, foi legalizada a poligamia(Não é por acaso que, sobre os crimes do Brasil no Paraguai, só consegui encontrar fontes em espanhol.)
Ignorar é bem diferente de esquecer.
Ignorar é não possuir um conhecimento, e muitas vezes reflete apenas as prioridades do nosso olhar. A pessoa brasileira média ignora a história da Nigéria simplesmente porque nunca voltou os olhos para ela, nunca a considerou digna de interesse.
O Brasil esteve profundamente envolvido na Guerra Grande uruguaia e pode-se argumentar que foi inclusive o seu maior vencedor e beneficiário. Mas ela já se perdeu completamente no nosso imaginário nacional. Não é nem mencionada nas salas de aula e nos livros didáticos. A pessoa brasileira média não esqueceu essa Guerra: ela nunca soube que ela existiu.
Já esquecer presume um conhecimento prévio que foi ativamente esquecido, colocado de lado, enterrado.
A escravidão, o massacre das pessoas indígenas e a Guerra do Paraguai, para citar apenas três exemplos, são coisas que praticamente qualquer pessoa brasileira sabe, nem que apenas esfumadamente.
Sabemos que nossos antepassados brancos mataram quase todas as nossas antepassadas indígenas. Sabemos que nossos antepassados brancos escravizaram quase todas as nossas antepassadas negras. Sabemos que nosso país ganhou uma guerra contra o Paraguai e que fizemos coisas terríveis por lá.
Às vezes, não sabemos mais nenhum outro detalhe. Mas sabemos o suficiente para saber que precisamos ativamente esquecer o que sabemos todos os dias.
Sempre que uma pessoa brasileira branca cruza com uma pessoa negra na rua, ou vai opinar contra as cotas raciais, ela precisa esquecer ativamente a escravidão.
Sempre que uma pessoa brasileira urbana lê uma matéria jornalística sobre Belo Monte, ela precisa ativamente esquecer o massacre dos indígenas.
Sempre que falamos no caráter pacífico do povo brasileiro, precisamos ativamente esquecer a Guerra do Paraguai.
E não só essa guerra, aliás, mas todos os outros massacres e violências dos quais já tomamos conhecimento, de Canudos a Pinheirinho, enfiando-os todos em um hiperlotado porão de horrores da memória nacional, sempre torcendo para o porão não explodir em nossa cara.
O homem que nunca esquecia nada, Funes, o Memorioso (por acaso, uruguaio), nos ensina que para lembrar todos os detalhes de um dia é preciso perder um outro dia inteiro recordando-o. Um custo alto demais.
A questão, portanto, é outra: como a História é a arte de esquecer algumas coisas e lembrar outras, então o que queremos lembrar e o que queremos esquecer?
Qual é o nosso patriotismo?
Por um patriotismo das vítimas, das derrotadas, das esquecidas
É fácil celebrar os vencedores da História do Brasil, os homens poderosos que construíram o país onde vivemos hoje.
Mas por que não celebrar suas vítimas? Por que não celebrar quem foi morta, atropelada, deixada de lado na estrada pelo projeto de Brasil que acabou vencendo?
Por que não celebrar quem era monarquista durante república e republicana durante a monarquia?
anarquismo foi derrotado na Revolução Russa, na Guerra Civil Espanhola, na Hungria, nas barricadas de Paris, em maio de 1968. Apesar disso, talvez por saber que as derrotas ensinam mais do que as vitórias, são elas que as pessoas anarquistas comemoram, são essas histórias que as inspiram.
Talvez essas pessoas, mortas e derrotadas há tanto tempo, ainda tenham lições valiosas a ensinar às anti-consumistas da sociedade de consumo, ou às militantes trans da sociedade cis.
Durante a década mais movimentada e mais esquecida de nossa História, entre os reinados de Pedro I e II, a falta de um governante central com legitimidade inquestionável fez explodirem diversos conflitos regionais antes recalcados. O Brasil, como hoje o conhecemos, quase se desfez.
Só no Pará, a repressão à Cabanagem fez 20 mil vítimas. (Para efeitos de comparação, a população de Belém no início da rebelião era de 12 mil.)


Talvez vivêssemos hoje em diversas repúblicas sul-americanas lusófonas. Teria sido melhor? Teria sido pior? Quem sabe. Depende para quem. Sempre depende pra quem.
Mas os vencedores — como sempre fazem, como sempre esteve predestinado que aconteceria — venceram. Seu legado (nosso legado) é esse Brasil uno, grande e poderoso que derramaram tanto sangue para construir em nosso nome.
Graças a esses vencedores, durante todo o século XIX, desfrutamos de poder militar suficiente para roubarmos território de todas as repúblicas vizinhas. Algumas vezes, usamos de força bruta. Em outras, usamos intimidação e diplomacia para ratificar os territórios que os bandeirantes já haviam roubado por meio de força bruta nos séculos anteriores.
Hoje, o Brasil tem mais que o dobro do tamanho que deveria ter de acordo com o Tratado de Tordesilhas. (Por trás de todo território, há sempre no mínimo um ato fundacional de violência.)
Quem sabe, se não fossem por esses bandeirantes, por esses militares, por esses diplomatas, por todos esses vencedores que exploraram, mataram, roubaram em meu nome, eu não teria a variedade de opções profissionais que meu colega salvadorenho não tem.
Quem sabe.
Mas sou ingrato.
Não quero celebrar quem construiu esse país pujante que tantas escolhas me deu. Meu patriotismo não é o patriotismo de Borba Gato, do Duque de Caxias, do Visconde do Rio Branco.
Quero celebrar as vítimas desse projeto nacional. Quero celebrar quem morreu em meu nome.
Meu patriotismo é o patriotismo de Eduardo Angelim, de Zumbi dos Palmares, de Amarildo da Rocinha. Dos bolivianos do Acre e dos paraguaios do Guairá. Dos parakanã de Belo Monte e dostamoios da Guanabara.
Minha pátria é a pátria dos cabanos e dos canudenses, dos quilombolas e dos favelados.
Antes de terminar, algumas notas e uma tragédia
Quem conta a história sobre judeus e prêmios Nobel é Isaac Asimov. Citei de cabeça. Não consegui encontrar a fonte de jeito nenhum. Se alguém souber, me avise.
A história do juramento à bandeira é de Allan Cutrim. O exemplo dos anarquistas é de Moxie Marlinspike, sugerido por Lucas Teixeira. A geógrafa Clara Machline me levantou pontos interessantes sobre a nossa relação com nosso espaço. A referência à Carl Sagan foi sugestão de Daniel Koch; à Funes, o Memorioso, de Sônia Ferreira. Obrigado ao Maurício Trida pela históriadas prostitutas de Niteroi.
A citação sobre a desmemória coletiva das nações é do historiador francês Ernst Renan e está mencionada no primeiro e, depois, desenvolvida no décimo capítulo de Comunidades Imaginadas, de Benedict Anderson, o melhor livro que conheço sobre nacionalismo e patriotismo. Muitas das ideias desse meu texto vêm de Anderson, apesar de ele ter uma visão bem mais positiva desses fenômenos do que eu.
A observação sobre “os laterais possíveis” da História está em “Violência Simbólica e Lutas Políticas“, nas Meditações Pascalianas, de Pierre Bourdieu.
O chamado para recuperar os perdedores da História está na introdução do maravilhoso A Formação da Classe Operária Inglesa, de E. P. Thompson.
Finalmente, as ideias da seção “O patriotismo é o culto aos vencedores” são de Walter Benjamin, nas suas “Teses sobre o conceito de história“.
Aliás, a morte de Benjamin, judeu alemão e escritor brilhante, é um fecho bem apropriado para a Prisão Patriotismo.
Com a ascensão do nazismo, todas as pessoas judias alemãs tiveram sua cidadania revogada: seu próprio país se voltou contra elas. Se Benjamin não podia ser cidadão nem de sua própria pátria, então, de onde?
Tentando chegar ao Novo Mundo, ele sai de Paris na véspera da ocupação e foge para a Espanha, então sob o comando do ditador fascista Franco. Na fronteira, as autoridades espanholas negam passagem ao grupo. Para Benjamin, aquilo significava repatriamento à Alemanha — mas como ser repatriado ao país que se negava a ser sua pátria?
Desesperado, longe de casa, sem poder seguir adiante, sem ter para onde voltar, sozinho em quarto de hotel em um país estrangeiro, Benjamin comete suicídio.
No dia seguinte, as autoridades franquistas autorizaram o grupo a passar.
Sua lápide, na cidade de Portbou, na costa da Catalunha, cita sua famosa frase:
“Não há nenhum documento de civilização que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie.”
Uma nota pessoal: eu nunca estou acima de nada que critico
Entre os países que mencionei no texto, estavam o Congo e o Zaire.
Na verdade, como fui saber depois, existem dois Congos: a República Democrática do Congo (cujo nome anterior era Zaire) e a República do Congo (também chamada de Congo-Brazzaville ou Congo-Brazavile).
Mas eu, do alto da minha arrogância patriótica brasileira, salpiquei esses países no meu texto como quem espalha cebolinha no macarrão, como se fossem cidades em Westeros ou na Terra-Média, apenas uns nomes sem existência concreta.
Afinal, Honduras ou Nicarágua, esse Congo ou aquele Congo, que diferença faz, não?
Quem me chamou atenção para esse ponto foi Elisa Maia, coordenadora do Programa de Estudante-Convênio de Graduação (PEC-G), do Governo Federal, que diariamente lida com estudantes do mundo inteiro, e de ambos os Congos, que desejam estudar no nosso país, graças às condições educacionais que oferecemos.
Muito obrigado, Elisa.
* * *
Quando escrevo denunciando um tipo de comportamento, quando escrevo sobre ser prisioneiro do padrão de beleza da mídia, sobre narcisismo e autocentramento, sobre patriotismo e preconceito, não estou nunca escrevendo de cima para baixo, como um guru intocável que conseguiu atingir um comportamento ilibado falando para as pobres coitadas lá embaixo que ainda não chegaram ao seu nível de iluminação.
Pelo contrário, estou falando a partir dos subterrâneos, do meio da multidão, como mais uma rota entre tantas esfarrapadas; estou falando justamente da batalha diária que travo comigo mesmo, todo dia, o tempo todo, para ser uma pessoa menos escrota, menos conformista, menos egoísta, menos superficial, menos vaidosa.
O único dedo que aponto é para mim mesmo. Sempre.
Se a carapuça que escrevi para mim também servir em vocês, melhor ainda. Quem sabe não conseguimos juntos virar pessoas humanas menos desagradáveis?
Não sou guru, não sou perfeito, não sou generoso.
Sou profundamente egoísta, patologicamente vaidoso, intrinsecamente autocentrado, fundamentalmente preguiçoso.
Mas, e essa é minha esperança, talvez não para sempre.
* * *
O encontro “As Prisões”
Há doze anos, escrevo sobre as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal-explicadas, os costumes sem-sentido. São elas:
verdade // dinheiro // trabalho // privilégio // sexismo // racismo // monogamia // religião // patriotismo // escolhas // respeito // certezas // os outros // medo // ambição // felicidade // narcisismo
Agora, estou promovendo o encontro “As Prisões” por todo Brasil. O público-alvo são ovelhas negras em busca de interlocutores. O encontro oferece a oportunidade de passarmos o dia inteiro trocando histórias, compartilhando vidas, debatendo perplexidades. Ao final, nós, todas as pessoas, estamos exaustas, gastas, esvaziadas. Confusas, atarantadas, chacoalhadas.
O encontro “As Prisões” é independente por ideologia. Não possui vínculo institucional algum. É divulgado pela internet de forma alternativa e realizado em praias, parques, quintais, praças. Oferece frutas e castanhas para comermos ao longo do dia e tem um intervalo para almoço. Começa sempre às nove da manhã de sábado ou de domingo e termina na hora que terminar. Muitas vezes, a química é tanta que não queremos ir embora: o encontro mais longo durou 13 horas.
O encontro é pago. Mas negar uma pessoa só porque ela não pode pagar seria dar importância demais a essa convenção arbitrária que chamamos dinheiro. Portanto, algumas pessoas pagam, outras pagam menos, outras não pagam. Na prática, as que pagam me possibilitam fazer o encontro para as que não pagam. Nada poderia ser mais solidário do que isso. (Para saber mais, consulte a política de gratuidades.)
Não é auto-ajuda, terapia, coaching. Não é palestra, aula, exposição de conteúdo. Não tem apostila, powerpoint, frases de efeito pra anotar no moleskine. Não oferece respostas, soluções, remédios. Não promete uma vida mais calma, mais centrada, mais bem-sucedida.
Não ajuda em nada. Pelo contrário, só atrapalha. Às vezes, nos transforma em pessoas ainda mais confusas, desajustadas, perdidas. Afinal, ser bem-sucedida e bem-ajustada em um mundo canalha pode bem ser indicativo de nossa própria canalhice.
As próximas são no Rio de Janeiro e em São Paulo, em julho de 2014. Depois, todas as capitais do nordeste, em agosto e setembro. E sul e centro-oeste, em outubro e novembro em maio de 2014.
Para mais detalhes, vídeos, depoimentos, calendário completo, tudo isso, veja aqui.
Ao longo de 2014, todas As Prisões serão publicadas primeiro no PapodeHomem. Confira as que já foram publicadas.
Aviso sobre linguagem e gênero
Meus textos buscam usar uma linguagem de gênero sempre neutra. Todas as explicações e argumentos, sem exceção, se aplicam igualmente a homens e mulheres, pessoas cis e trans*, pessoas hétero, homo e bissexuais. Se alguma frase ou construção pareceu excluir essa ou aquela identidade, sexo, gênero ou orientação, foi descuido meu. Por favor, avisem e vou corrigir. Para mais detalhes sobre como utilizar uma linguagem menos sexista, por favor, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua.
alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // se gostou, venha aos meus encontros (os próximos são no RJ e SP em julho) ou receba meus novos textos por email.

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